‘Apostas online são ídolos que deixam Deus em segundo lugar', diz psicólogo cristão
- 16/10/2024
As apostas online, operadas por empresas popularmente conhecidas como "bets", estão se tornando uma preocupação crescente no Brasil.
A facilidade de acesso a essas plataformas de jogos, que contam com diversas empresas operando no país, pode ser um dos fatores que explicam a grande adesão a essa modalidade de apostas.
Embora pareçam inofensivas, essas apostas podem rapidamente se transformar em um comportamento de risco, criando um ciclo vicioso de perdas e tentativas constantes de recuperar o dinheiro perdido.
As famílias de baixa renda são as mais impactadas, sofrendo uma redução significativa nas economias e até dificuldades para pagar contas essenciais.
Em agosto de 2024, cerca de 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram aproximadamente R$ 3 bilhões em apostas online.
Em resposta a essa situação, o Governo Federal divulgou uma portaria que regulamenta as plataformas de apostas no Brasil, com previsão de entrada em vigor em janeiro de 2025.
Na semana passada, o STF (Supremo Tribunal Federal) convocou uma audiência pública para discutir os impactos das apostas online no Brasil, que está marcada para o dia 11 de novembro.
Em outubro, o programa “Gaúcha Mais” ouviu três membros do grupo de Jogadores Anônimos de Porto Alegre, que compartilharam relatos sobre o impacto do vício em apostas em suas vidas.
Todos relatam ter perdido dinheiro, além de enfrentarem impactos emocionais e sociais devido ao vício.
Para abordar os aspectos emocionais que as apostas online promovem, o Guiame entrevistou Eliézer Caroliv, psicólogo, teólogo e mestre em ciências da religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O psicólogo e teólogo Eliézer Caroliv. (Foto: Arquivo pessoal)
Fundador e líder da “Confraria Escuta & Reflexão”, cujo objetivo é promover saúde mental no meio cristão, Caroliv diz que quando falamos das plataformas de apostas esportivas online, estamos diante de algo nebuloso.
Segundo Caroliv, isso acontece devido à sua arquitetura virtual, muito bem elaborada com um sistema de recompensa mental que se alinha aos fatores educacionais, às gritantes diferenças socioeconômicas e à paixão pelo futebol.
Segundo Caroliv, que é especialista em aconselhamento pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo, esses mesmos conceitos podem ser aplicados a outras modalidades como jogos de azar e casinos.
“Essas apostas online carregam um enorme potencial de causar desestabilidade tanto no âmbito da economia brasileira, como no emocional dos envolvidos, onde uma teia de aranha se forma na mente, trazendo prejuízos existenciais a médio e longo prazo”, respondeu Caroliv, que também é presbítero da Assembleia de Deus Ministério Vila Zelina, em SP.
Casado com Rosangela Domingos, o terapeuta Caroliv afirma que “estamos vendo uma procura crescente por serviços psicológicos devido ao vício em apostas online”.
Acompanhe a entrevista:
Guiame: Em sua opinião, quando o hábito de jogar online se transforma em um vício?
Eliézer Caroliv: Vamos partir do ponto que não é o fato de jogar em si o problema, uma vez que o jogo esportivo é um entretenimento plausível segundo a convenção social. No entanto, questiono esse argumento, uma vez que qualquer tipo de jogo carrega um potencial nocivo, podendo levar o jogador a ações compulsivas irracionais. Diversas testemunhas que se envolveram com as bets alegam que começaram com um joguinho simples, esporádico, e quando deram conta, estavam afundados em dívidas e sem saber como chegaram a esse ponto crítico.
G.: Como a psicologia vê esse tipo de comportamento e por que as pessoas são tão atraídas pelos jogos?
E.C.: Para o psiquiatra suíço Carl Jung, qualquer tipo de vício é ruim, seja de drogas, álcool ou idealismo. Já para Viktor Frankl, o vício é uma forma de obter satisfação pessoal de forma falseada, pois é uma consequência da falta de outros meios de realização. Com as facilidades ofertadas pelas bets e mediante seu caráter aparentemente inofensivo, é fato que para além do entretenimento, o apostador está buscando nesses jogos, algo que preencha uma necessidade existencial.
G.: Mas nem todos sentirão impulsividade pelos jogos...
E.C.: Os sinais que indicam que algo está saindo do controle são variáveis de pessoa para pessoa, mas algumas características são comuns, como o encantamento com as possibilidades sugeridas pelas casas de apostas, que apresentam exemplos de ganhadores que mudaram de vida; o aumento da frequência de apostas como fuga das realidades cotidianas; ou ainda para tentar resolver problemas financeiros de forma fácil e mágica.
G.: Pelo que vemos, as empresas têm investido bastante para atrair os potenciais jogadores.
E.C.: Um ponto de atenção aqui, é sobre a distorção cognitiva na interpretação dos anúncios e apelos de marketing recebidos, pois quando se joga a primeira vez, o algoritmo irá disparar mensagens em todas suas redes sociais te convidando a continuar jogando, para assim aumentar suas chances de ganhar. Se você estiver cedendo a esses apelos sem critérios claros, é provável que já esteja em risco. São mirabolantes as articulações cognitivas que o indivíduo lança como subterfúgio, para justificar seu comportamento, o que é feito através de engodo e mentiras. Importante também se dar conta, do que se está abrindo mão para apostar, muitas vezes, coisas essenciais e básicas para a subsistência. Foi noticiado recentemente que beneficiários do programa social Bolsa Família estão utilizando parte do benefício nas casas de apostas online; outros vendem seus pertences ou fazem empréstimos bancários para manter o vício. Assim, o ciclo mental viciante se retroalimenta: joga-se para ganhar, ganha-se um pouco, perde-se muito, segue-se o jogo para recuperar o que se perdeu e joga-se até perder o que não se tem.
G.: Quais são os principais gatilhos que levam ao vício em jogos online?
E.C.: Cada indivíduo é um universo em si mesmo, segundo Jung. Para ele os traumas de infância e experiências emocionais podem moldar a tendência ao vício e determinar a luta contra a dependência do indivíduo. Já Frankl acreditava que o pano de fundo de nossos problemas psicológicos é o vazio existencial, característico do nosso tempo, sendo essa uma condição que surge quando as pessoas perdem o sentido da vida, o que pode levar a neuroses pessoais e coletivas.
G.: Existe algum fator psicológico ou social que intensifica essa dependência?
E.C.: Essas neuroses coletivas são produzidas pelo intenso apelo social da mídia que disputa centavo a centavo a atenção dos jogadores. No mundo online ficou muito mais fácil o acesso a esse inconsciente coletivo, onde há um ciclo de ondas energéticas que conecta quem geralmente está buscando melhorar de vida de forma fácil e magica, colocando essas pessoas a um click da adesão do seu produto virtual.
G.: E para isso essas empresas são bastante criativas...
E.C.: Uma das principais estratégias usadas pelas casas de apostas são as amostras grátis, que geralmente são ofertadas para ganhar a atenção dos apostadores, onde uma quantidade mínima é depositada para o potencial jogador começar sua jornada no universo das apostas. Uma vez encantado, esse indivíduo passa a compartilhar o que considera ser uma oportunidade para mudar de vida. Nesse cenário, os gatilhos mais perceptíveis não são conscientes.
G.: E como isso funciona na prática?
E.C.: O inconsciente, que é um complemento que se comunica com a consciência, não sendo apenas um depósito de experiências reprimidas, mas também um indutor dessas experiências, faz com que as decisões se tornem menos reflexivas diante das ofertas tentadoras. Então, ao receber uma mensagem no celular sobre oportunidade de ganho fácil, o indivíduo não raciocina imediatamente sobre as consequências, focando o possível benefício que salta diante dos olhos. Com adesão repetitiva as chamadas, que, diga-se de passagem, são muito apelativas, acontece uma distorção cognitiva que inverte os valores pessoais e coloca o jogador numa bola de neve mental irreversível. Se você chegou a esse ponto, procure ajuda com um profissional da saúde mental.
G.: Como os cristãos podem identificar se estão permitindo que os jogos online se tornem um ídolo em suas vidas, tomando o lugar de Deus em termos de tempo e atenção?
E.C.: Diante do que já abordamos, considerando os riscos que os jogos trazem mediante o potencial de vício, podemos considerar que o cristão deveria se manter distante dos jogos de apostas, sejam físicos ou online. Jesus advertiu que o cristão é a luz do mundo, o colocando na contramão do sistema, onde a falta dessa luz traz um perigo pessoal e social iminente. Já o Apóstolo Paulo trabalhou a questão da concupiscência, que é o desejo intenso por coisas carnais, informando que há uma guerra interior intensa no inconsciente de cada cristão. A Escritura Sagrada é repleta de referências sobre ídolos existenciais, que são impulsos interiores que podem ser experimentados como falsas necessidades ou alvos centrados no homem, e que deixam Deus e o seu reino em segundo lugar.
G.: Que ídolos seriam esses?
E.C.: Alguns exemplos desses ídolos são: desejos da carne, amor ao dinheiro e uma mente voltada para as coisas terrenas. Paulo instruiu seu discípulo Timóteo sobre algo que, de tão elementar, nos esquecemos no viver cotidiano: “por isso, tendo o que comer e com que vestir-nos, estejamos com isso satisfeitos. Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos.” (1 Timóteo 6:8-10).
G.: Quais são as consequências mais comuns do vício em jogos online para a saúde mental, emocional e espiritual?
E.C.: Como terapeuta posso afirmar que estamos vendo uma procura crescente por serviços psicológicos devido vício em apostas online. O transtorno de jogo consta no manual estatístico dos transtornos mentais como vício comportamental, ou seja, que não é necessário ingerir nenhuma substância estimulante. Uma nota alarmante é o fato de que o vício em jogos já é equiparado ao vício em drogas, como cocaína e álcool. Essa constatação não é nova, mas com as bets ganhou novas configurações. Basta analisar os testemunhos das vítimas das bets para se concluir o quanto a vida dos indivíduos vem sendo destruída. Esses indivíduos, ao se endividarem nos jogos, deixaram de investir em suas famílias, educação e até mesmo de contribuir na igreja. Contribuição esta não apenas financeira, mas principalmente de engajamento com a comunidade de fé.
G.: Como isso pode afetar a vida familiar, social e espiritual?
E.C.: As consequências auferidas carregam todos os tipos de afetos: perda financeira, rompimentos de relacionamentos sociais, divórcios, intrigas familiares, falências e até homicídios. A vítima dos jogos online, percorrerá os corredores das clínicas médicas, psicológicas e salas pastorais. O indivíduo destruído emocionalmente, diante da catástrofe das perdas e prejuízos, flertará com a solidão e a angústia existencial, podendo desembarcar numa depressão, ansiedade e até mesmo no suicídio, que é o último recurso imaginário para se acabar com o sofrimento. Foi constatado que cerca de metade dos indivíduos viciados em jogos, possuem ideação suicida. Você já perdeu dinheiro? Como se sentiu? Multiplica esse sentimento por dez quando pensar em alguém viciado em jogos de apostas, onde perder dinheiro se confunde com perder vida.
G.: Quais estratégias e ferramentas você recomendaria para que as pessoas se protejam do vício em jogos online, especialmente no contexto de manter uma vida equilibrada e de obediência a princípios cristãos?
E.C.: Talvez você não saiba, mas existe um grupo de apoio chamado jogadores anônimos (JA) que presta apoio emocional para quem está lutando contra o vício em jogos de azar. Se você conhece alguém que esteja nesse sofrimento, talvez seja uma boa indicação. Agora, para que não se chegue a esse ponto, é fundamental que você leve a sério essa ameaça e que desenvolva ações que protejam você e sua família dos descaminhos das bets. Converse abertamente sobre o tema, ore e procure saber o que o Evangelho tem a ensinar sobre o tema, contrastando com o prognóstico social. Alguns cuidados são necessários, como o envolvimento em grupos de apoio, seja no âmbito público, privado ou religioso. Ações mais radicais, como o bloqueio de acesso aos sites de apostas por exemplo, poderão ser necessárias. Temos à disposição, diversas ferramentas e softwares que permitem bloquear sites de apostas. Um ponto sensível que percebo em clínica, são o das aproximações sinceras. Por exemplo, se você percebeu que um amigo se distanciou, se isolou repentinamente, procure saber o que está acontecendo. Mais importante que bloquear acessos online é desbloquear os acessos nos relacionamentos reais. Percebo também que o grande bloqueio a ser superado no meio cristão é o da negação. Quando o indivíduo assume para si mesmo que não precisa de ajuda, está cavando um buraco na sua cova existencial. Seja humilde, converse com seus pares sobre uma eventual luta contra o vício, procure ajuda médica e psicológica, pois mais triste que um viciado perdido é um viciado convencido de que não precisa lidar com suas próprias sombras.
G.: Para os pais cristãos, como eles podem ajudar seus filhos a desenvolverem um relacionamento saudável com a tecnologia e os jogos online, sem que isso interfira em seu crescimento espiritual e bem-estar geral?
E.C.: Muitos acreditam que privar os filhos menores de idade dos aparelhos mobile ou proibir o acesso às tecnologias, irá impedi-los de caírem nas armadilhas das bets. Desconfio dessa atitude e “aposto”, para ficar no âmbito da palavra-chave de nossa reflexão, no diálogo e acolhimento. Por esse prisma, escutar e compreender a demanda pela perspectiva do filho é uma atitude que fará toda a diferença no relacionamento. Entenda, seu filho não pedirá para jogar numa bet, mas a porta de entrada poderá ser um campeonato de games, por exemplo, e você só saberá disso estando próximo, buscando compreender o universo da criança. Acredito que a força maior que arrasta um filho é o exemplo dos pais, se houver diálogo e consenso, os resultados serão positivos. Talvez deva-se discutir qual a melhor fase para permitir que as crianças tenham acesso a um celular particular, pois o maravilhoso mundo da internet poderá expô-las a um cardápio de opções onde as bets trafegam em mares sombrios.
G.: Qual a fase de vida dos filhos que os pais devem estar mais atentos?
E.C.: Principalmente na transição da adolescência para vida adulta, os cuidados devem ser redobrados, já que ainda não estão emocionalmente desenvolvidos para tomadas de decisões assertivas, o que certamente os tornam mais vulneráveis aos transtornos existenciais. Mas não se enganem, seus filhos, sobrinhos e agregados pertencem a uma geração que é essencial ter contato com as tecnologias. Então, proponho alguns pontos que podem amenizar esse conflito entre ser ou não ser: considero que quanto menor a criança, menor deve ser o tempo de uso das tecnologias. Os pequenos precisam ir se acostumando pouco a pouco, de forma a terem tempo hábil para assimilação dos conteúdos; algo importante a se considerar é a celebração de um acordo quanto aos horários para o uso do celular, de modo a não atrapalhar outras atividades lúdicas, como as esportivas e educacionais e, por fim, os pais precisam estar presentes na vida dos seus filhos. Brinquem no parque com eles, joguem videogame juntos, participem das reuniões de pais e mestres, acompanhem eles na escola dominical, orem com eles em casa e os ajudem a ler e entender o Evangelho de Jesus. Fazendo isso, amontoarás brasas anti-Bets sobre as vossas cabeças!
G.: Como os pastores deveriam abordar esse tipo de tema com seus membros?
E.C.: Abertamente, para ir direto ao ponto. O pastor ou líder religioso precisa estar antenado às questões sociais mais relevantes e que trazem impacto a seus membros e comunidade de fé. O teólogo Karl Barth afirmou que o pastor precisa ter a Bíblia numa mão e o jornal do dia na outra. Esse jornal, hoje, é qualquer mídia que traga informações e impactos em sua comunicação social. Esse tema deve ser pauta da educação cristã de qualquer denominação que preze pela saúde mental e espiritual de seus seguidores. Promova roda de conversas, escutas pastorais, envolva a congregação num debate sadio sobre o crente e a sociedade. Falamos tanto sobre o anticristo, mas será que o “sinal das bets” não é uma clara demonstração de que deveríamos despertar do sono da indolência? Todos podemos achar que isso não tem nada a ver conosco, afinal não somos jogadores compulsivos, mas todos devemos estar conscientes que de maneira indireta, estamos sendo afetados, seja pelo sofrimento de alguém próximo, nosso próprio sofrimento, seja pelas ameaças constantes do fluxo de conteúdos que alimenta nosso vulnerável inconsciente coletivo.